domingo, 6 de fevereiro de 2011

História de favela que virou cartão-postal caiu no esquecimento, mas pode servir de ponto de partida para pensar erros e acertos das políticas habitacionais






Estima-se que a cada ano Curitiba receba 3,4 milhões de turistas  uma proeza para a cidade que em meados do século passado era alvo de achincalhes até de seus próprios moradores. Hoje, é provável que até os adeptos da piada de que "ritiba" vem do guarani do "mundo" reconheçam que existe o que ver e fazer por aqui.

Para quem vem de fora, as escolhas passam forçosamente pelo Jardim Botânico, parque de 245 mil metros quadrados que se tornou o cartão-postal da capital. Dados da prefeitura informam que cerca de 40% dos usuários da Linha Turismo descem ali. Quem olha a estufa, os jardins inspirados em Versalhes e a picada de mata mal imagina que naqueles rincões, entre os anos 1950 e meados dos 1970 ficava a maior ocupação irregular de Curitiba  a Favela do Capanema, então com 700 famílias, cerca de 3 mil pessoas, o equivalente a 30% de toda a população sem-teto da cidade.

Além de imensa, a área seguia à risca as regras da informalidade: os barracos eram divididos em pe­­­­quenos feudos dominados por atravessadores e comerciantes de taperas, o que exigiu pendores di­­­­plomáticos  e ditatoriais  dos téc­­­­­nicos da Companhia de Habi­­­tação (Cohab). Entre 1976 e 1977, uma engenhosa operação de desfavelamento tirou o aglomerado do mapa, servindo de modelo para outras ações.

O projeto distribuiu a população por uma dezena de terrenos em bairros como o Cajuru, Boquei­­­rão e Uberaba. Só não cumpriu o previsto 100% porque os moradores de uma das vilinhas do Capa­­­nema não embarcou nos caminhões os da Vila Pinto, situada mais abaixo. E porque o nome Capa­­­­nema, mesmo sem os casebres, ficou marcado. O estigma que pairava sobre o bairro era tamanho que, em 1992, um plebiscito popular aposentou o nome nos livros de História. A própria Pinto seguiu atrás, sendo rebatizada como Vila das Torres.

À época, a distância entre o Capanema e a Pinto era algo como 40 passos, a largura da Avenida das Torres. Hoje, uma e outra simbolizam duas eras geológicas dos programas habitacionais. Estudá-las pode ser a chave para entender por que o direito à moradia é um dos fossos da vida brasileira.

A Torres se tornou uma favela urbanizada resultado de uma política da década de 1980 em que os vínculos dos moradores com a área ocupada são respeitados, mantendo-os no lugar em que estão. O Capanema – a favela que virou parque pertence à época em que os pobres eram levados para outras divisas longínquas e carentes de infraestrutura.

Lá se vão 35 anos do fim do Ca­­­pa­­­nema, tempo suficiente para per­­­guntar se o desfavelamento mais radical da cidade deixou alguma lição. A pergunta foi feita a estudiosos e a antigos moradores. O silêncio foi a resposta. Trata-se de uma daquelas questões dignas de um simpósio. Em meados da década de 1970, Curitiba tinha 38 áreas de ocupação, com 16 mil moradores. Hoje, de acordo com a Cohab, são 254 áreas, onde vivem 53.962 famílias, 207 mil pessoas. Entre o Capanema e os bolsões de agora há um mar de políticas mais ou menos equivocadas.

Respostas

Mas há quem arrisque uma resposta. A arquiteta e urbanista Cris­­­tina de Araújo Lima, da Uni­­versidade Federal do Paraná (leia página ao lado), defende que ape­­­sar dos ganhos do Jardim Bo­­­tânico, a população poderia ter permanecido lá, debaixo de bons programas sociais, já que não se tratava de uma área de risco.

O também arquiteto Lóris Guesse  do corpo técnico da Cohab na época da operação não se contém. O Capanema era uma favela de filme. No início, foi contra o desmanche, mas logo percebeu o lado positivo. Pode ter sido a primeira vez que uma Cohab recolocou tanta gente em uma dezena de áreas urbanas, integrando-as a outros bairros. Não criamos guetos nem zonas problemáticas. Nossa postura estaria hoje de acordo com o Estatuto da Cidade, opina.

Os pesquisadores reforçam que o estudo das mentalidades habitacionais do passado pode ajudar a entender os destinos tomados pelas metrópoles. Curitiba, por exemplo, resiste à habitação social em áreas urbanizadas centrais, mostrando-se fiel ao espírito do Capanema. A retomada de investimentos federais, na esteira do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, deve mexer com esses conceitos. Afinal, esgotaram-se as áreas para reassentamento e não há mais dinheiro público para criar vilas artificiais. É preciso ser criativo.

Vale fazer cálculos: em 2012, quando forem encerrados os programas Minha Casa, Minha Vida e Morar em Curitiba, 6.098 famílias da capital terão sido atendidas. É bastante. Mesmo assim, ainda restarão outras 1.828 famílias à espera de casa, terreno ou regularização. Por ironia, mais ou menos o número de gente que vivia no Velho Capanema. Eis uma conta e uma história que não acaba.


Fonte: Gazeta do Povo  

José Carlos Fernandes

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