"Lógico que eu gostava de andar. Não posso mais.
Beleza! Não é isso que vai me limitar."
Era 12 de novembro de 2003, Fábio e o irmão voltavam de Jaguariaíva quando foram surpreendidos por uma manobra imprudente de um motorista que trafegava em sentido oposto. O veículo de Fábio perdeu o controle e capotou a beira da pista. Seu irmão sofreu apenas leves escoriações. Já Fábio, como ele mesmo diz, teve a sorte de sair com vida. Mas em decorrência do acidente teve uma lesão na medula que o impediu de andar. Mesmo diante das dificuldades, Fábio encarou o desafio de viver em um mundo feito quase que exclusivamente para pessoas que andam.
O acidente mudou radicalmente sua maneira de enxergar o mundo e o aproximou ainda mais de Deus. A Pixy quis saber como Fábio fez para ser uma pessoa bem resolvida e consciente de suas limitações físicas, sem deixar de bem viver a vida.
* Entrevista publicada originalmente na Revista Pixy 6.
Pixy – Como era o Fábio antes do acidente?
Fábio – Antes vivia só pensando em ganhar dinheiro, não tinha humildade, era egoísta. Mas nunca fui de pensar no ontem, sempre pensei no amanhã. Sempre em olhar para a frente, nunca para trás. Eu era muito individualista e hoje já penso em viver melhor. Já penso mais nos outros do que em mim.
Pixy – E, como é natural da juventude, você se achava indestrutível?
Fábio – Achava sim, me achava o "bonzão", briguento, enfim, me achava o tal. Ninguém podia ralar em mim. Jogava bola, gostava de acampar, escalar, mas não fui muito baladeiro, de bagunça. Gostava de aproveitar a juventude. Eu fui escoteiro durante 12 anos em Curitiba e sempre acampava na serra do mar, fazia montanhismo. Sinto mais falta disso, do verde, do campo e devido às minhas circunstâncias físicas isso hoje diminuiu.
Pixy – Como é que foi o seu acidente, o que é que exatamente aconteceu?
Fábio – Eu estava trabalhando na hora do almoço e fui buscar um carro em Jaguariaíva na loja do meu irmão, pois um cliente daqui queria ver o carro. Fui de carona até Jaguariaíva e voltei com o carro. Nessa volta, um outro veículo na rodovia me fechou, me pôs para fora da rodovia, capotei e o cara foi embora sem prestar socorro. Mas hoje já posso dizer que perdoei o cara, não tenho nenhuma mágoa dele.
Pixy – E o que você sentiu no momento do acidente? Você chegou a apagar? Você lembra de alguma coisa?
Fábio – Apaguei, só lembro que eu acordei no hospital depois de oito horas lá em Curitiba. Tive amnésia temporária devido ao trauma do acidente. Só lembro do momento da freada e mais nada. Nem da dor eu lembro. Eu acordei quando estava dentro da tomografia, nu, e pensei: "Meu Deus o que é que eu tô fazendo aqui?". Fui tentar sair da maca e vi que a minha perna já não obedecia. Eu tive muita dor nessa hora. Me deram morfina, fui novamente anestesiado e acordei depois de três horas, já de madrugada, no quarto. Daí eu vi que meu pai estava na porta. Fui tentar levantar e novamente vi que a perna já não estava obedecendo mais.
Pixy – E qual foi a tua sensação nesse momento? O que te passou pela cabeça?
Fábio – Pânico. Eu tive muito pânico. Ficava pensando: "O que é que eu faço agora?". No momento não chorei, assimilei rapidamente a minha situação. Pela educação do meu pai, eu tive aquela ideia de ter que enfrentar esse problema, como homem. Nunca fui "cagão", medroso. Já que estou aqui nessa situação, vamos enfrentá-la. Vamos fazer fisioterapia, tentar voltar a andar. E lógico, depois de uns três, quatro dias quando cai a ficha, você chora. Mas não adianta se entregar e ficar em um quarto chorando.
Pixy – Qual foi a tua lesão?
Fábio – Foi uma lesão baixa. Eu não sou nem paraplégico, eu sou paraparético. Que é uma lesão baixa e incompleta. Minha lesão foi 1mm na coluna torá-xica em C7, C8. Eu consigo ficar um pouquinho em pé, andar com o andador. Sem aparelhos eu não ando.
Pixy – Muitos casos de sequelas de acidentes são em decorrência do mau atendimento pré-hospitalar. Você define que a sua lesão foi motivada por isso ou foi exclusivamente pelo acidente?
Fábio – Posso dizer que tive um ótimo atendimento. A minha condição não foi por falta de um bom socorro não. Eu tive sorte porque na mesma hora passava por ali um casal de médicos de Guarapuava. O meu irmão, que sofreu apenas ferimentos leves, saiu do carro para buscar ajuda, pegou uma carona até Jaguaríaíva, ligou para o meu pai e conseguiu uma ambulância. Nesse meio tempo enquanto eu esperava a ambulância, esse casal de médicos me socorreu e me imobilizou. A ambulância chegou, eu estava de bruços no mato, me pegaram com cuidado e colocaram o colete cervical. O atendimento foi perfeito. O casal de médicos eu nem cheguei a conhecer quem era e até hoje não sei. Posso dizer que tive muita sorte.
Pixy – E como foi esse período pós-acidente, depois que os médicos te deram alta?
Fábio – Eu não conseguia sentar e nem ficar em pé. Saí do hospital numa maca e fui para um hotel adaptado em Curitiba. Fiquei nesse hotel durante um mês. Minha mãe e a minha esposa tinham que dar banho em mim. Eu tinha voltado a ser criança. Além da lesão medular, eu fraturei três costelas e o braço esquerdo. Então eu tinha só um braço bom. Para piorar, eu tive uma infecção hospitalar. Depois de quatro meses, voltou a bactéria, quando eu tive que fazer uma nova cirurgia para retirar ferragens, pinos. Só por Deus, quase morri de infecção hospitalar.
Pixy – Em algum momento, diante dessas inúmeras dificuldades, você chegou a questionar Deus e de se perguntar: por que comigo?
Fábio – Eu lembrei de Jó. Quando Jó perdeu tudo e ficou cheio de feridas. Me espelhei nessa história. Graças a Deus, nunca blasfemei.
Pixy – Mas a tua relação com Deus mudou depois do acidente? Ficou mais próxima?
Fábio – Mudou sim, fiquei mais íntimo de Deus. Sempre tive Deus. Tinha Deus antes e tenho agora também. Lógico que a minha situação fez eu procurar mais por Ele. Como eu já disse tenho orgulho e repito para vocês que nunca me questionei: "Deus, por que eu?" Nada acontece sem a vontade de Deus. Para mim Deus é maravilhoso e em vez de ficar reclamando, eu sempre pedi a Ele que me curasse, que me tirasse do hospital, curasse a minha infecção e graças a Ele eu tive muitas curas. No começo eu não conseguia nem ficar sentado e depois de seis meses de fisioterapia eu voltei a ficar em pé e a andar com aparelhos e a ficar sentado na cadeira de rodas. Eu também me questionava e achava que o meu casamento estava acabado porque acreditava que não poderia ter relacionamento com minha mulher. Mas nada disso aconteceu, Deus me restaurou. Logo após o acidente, eu já percebi que não havia afetado a possibilidade de ter relacionamento sexual. O que eu não posso esquecer de contar também é que durante um ano eu tive que usar fraldas, pois eu fazia as necessidades nas calças e isso para um homem é humilhante. Hoje eu sinto minha perna esquerda, mas não sinto a direita. Mas Deus foi me libertando de muitas dessas dificuldades
Pixy – Quais foram as suas principais motivações logo após o acidente?
Fábio – Foi Deus e minha família, principalmente minha esposa. Sempre pensei em olhar para a frente, seguir meu caminho. Já que estou assim, vou procurar enfrentar e resolver o problema. Eu também tive dois exemplos, um deles é o Luiz Mário Possatto, que é um cara que há muito tempo é tetraplégico. Eu pensava que já que estava assim, eu queria me espelhar em gente que vivia a mesma situação. Eu me inspirei muito no Luiz Mário e também no Herbert Vianna (líder dos Paralamas do Sucesso). Eu procurei os dois. O Luiz Mário é excepcional, ele cuida de três fazendas em uma cama. Vai de manhã, trabalha na fazenda dele e volta. Continua na ativa. Então foi nesses dois espelhos de força que eu me agarrei.
Pixy – Falando em Herbert Vianna, na festa dos 50 anos da Capal você teve a oportunidade de conversar com ele. O que é que rolou?
Fábio – Na verdade só ele me perguntou. Eu queria saber dele, mas ele queria saber de mim (risos). Ele perguntou quem eu era, quantos anos eu tinha, qual tinha sido a minha lesão. Perguntou tudo sobre a minha vida. Falei do Luiz Mário para ele também. Na verdade eu não consegui perguntar nada para ele. Mas pelo menos tive o prazer de falar da minha vida.
Pixy – Quando você ficou nessa situação de cadeirante você teve que reaprender muitas coisas. O que foi mais difícil nesse processo?
Fábio – Foi dirigir carro. Uma coisa legal foi quando eu tomei banho pela primeira vez, após 30 dias do acidente, eu chorei muito. Depois de 11 meses eu chorei quando consegui ficar em pé e quando eu voltei a dirigir, após 4 anos.
Pixy – Na novela da Globo "Viver a Vida", a atriz Alinne Moraes interpretou uma personagem que havia ficado tetraplégica e que passou por esse processo de recuperação e todas essas dificuldades. O que você acha que essa exposição na mídia traz de positivo?
Fábio – Quebra de preconceito.
Pixy – Você chegou a sentir isso na pele?
Fábio – As pessoas olham você como um doente. Com a novela, ajudou a expandir um pouco a visão das pessoas.
Pixy – E como é não andar em um mundo feito para quem anda?
Fábio – Em nossa cidade, os lugares ainda não são adaptados, infelizmente. Mas o que mais atrapalha é essa falta de respeito com o próximo. Quando alguém vai planejar alguma construção, ele tem que pensar na acessibilidade para os cadeirantes, uma rampa, um banheiro adaptado.
Pixy – Você acredita que isso melhorou recentemente?
Fábio – Melhorou pouco. Ainda está muito devagar. Acho que isso é mais um problema geral do Brasil. Fora do país já é diferente. Eles te tratam com respeito, educação. Eu acho que as pessoas precisam de mais consciência. Vou dizer algo bíblico: "primeiro amar a Deus e depois amar o próximo". O que falta é justamente esse amor ao próximo. Se tivéssemos mais amor ao pró-ximo não teríamos buracos na calçada, um degrau na rua, um banheiro não adaptado.
Pixy – Mas você possuía essa visão antes do acidente?
Fábio – Não tinha. Nunca imaginei estar assim numa cadeira de rodas. Quando acontece isso, nós vemos que a vida da gente não passa de nada. Se tem um muro em minha vida, eu não vou re-cuar, eu vou enfrentá-lo. Para mim é um desafio dia a dia estar numa cadeira de rodas.
Pixy – Como é o teu dia a dia hoje?
Fábio – Acordo sozinho, pulo para a minha cadeira de banho, que é de rodas também, faço minha barba sozinho, escovo meus dentes sozinho. Faço todas as minhas necessidades fisiológicas sozinho. Me troco, vou para o meu carro adaptado e venho trabalhar. Tenho uma vida normal.
Pixy – Então hoje você alcançou a independência?
Fábio – Total não, mas parcial sim. Tem dias que eu viajo sozinho, vou e volto.
Pixy – E nessas viagens, retorna algum trauma do acidente?
Fábio – Não, porque eu não me lembro de nada. Não tenho medo não, já foi superado esse trauma.
Pixy – Tem uma entrevista com um famoso surfista o Taiu que ficou tetraplégico, e perguntaram para ele se as pessoas ficavam olhando por causa da cadeira. Ele respondeu que as pessoas não olhavam com pena para ele, porque a cadeira dele era moderna devido a condição financeira. Você acha que a tua condição financeira te favorece a enfrentar esse problema com mais facilidade?
Fábio – Acho que não tem nada a ver. A minha condição financeira fui eu que criei. Deus me deu sabedoria e com ela eu pude conquistar essa condição de ter uma "vida boa". Mas eu abriria mão de tudo o que eu tenho para voltar a andar.
Pixy – Então se alguém chegasse e dissesse que você iria recomeçar a sua vida numa favela e que voltaria a andar, você toparia?
Fábio – Sem dúvida, eu toparia.
Pixy – Existem pessoas que não possuem nenhuma condição financeira e tem que encarar o mesmo problema. Como é que você vê isso?
Fábio – Lógico que é bom você ter uma cadeira moderna. Mas você ter ou não ter dinheiro, isso não vai fazer você andar ou não andar. Então isso não te facilita em nada. A pessoa tem que procurar os seus direitos, como eu fiz. Se o cadeirante buscar os seus direitos, ele consegue ter as mesmas condições que alguém com dinheiro terá. Se di-nheiro me desse saúde, eu compraria a minha cura hoje. É claro que futuramente a cura será possível.
Pixy – E qual é essa sua expectativa de cura?
Fábio – Eu vejo por dois lados. Um é o milagre de Deus em minha vida, ou Deus dando à medicina condições de curar as pessoas. Eu vejo um bom futuro para todos nós cadeirantes. Acre-dito que isso vá se realizar em 5 ou 10 anos.
Pixy – Você não é conformado com a sua atual situação de cadeirante?
Fábio – Eu não aceito e nunca vou acei-tar. Tenho ambição de voltar a andar. Eu não nasci assim. Então vou sempre lutar para melhorar.
Pixy – Com que expectativa você acompanha essa evolução da medicina, principalmente o estudo com células-tronco?
Fábio – Tenho acompanhado e acredito que é por aí que vem a cura. Só que muitas vezes dá a impressão de que os laboratórios não veem vantagens em dar para a gente condição de cura, porque para eles é mais fácil te vender um remédio para a dor, do que te dar a cura. É muito mais lucrativo. Na minha visão, o Brasil teria que investir mais na prevenção de acidentes. Mas a cura vai existir, é questão de tempo.
Pixy – Vimos várias fotos de você praticando rafting. Como é esse seu lado aventureiro pós-acidente?
Fábio – O Joel um bombeiro da Inpacel (Stora Enso) um dia me convidou para praticar rafting em Jaguariaíva. Ele me perguntou o que eu achava de fazer rafting e também pular de paraquedas. Eu não hesitei e falei que topava. E fui fazer os dois. Eu tava cansado daquela mesma rotina e disse: "quer saber de uma coisa, tô dentro". Foi num domingo, me arrumei, não tive vergonha que me pegassem no colo e muito menos medo de enfrentar o desafio. Cheguei lá e recebi uma instrução do que poderia acontecer caso o barco virasse e por um acaso, o barco chegou a virar e só eu consegui me segurar nele. Todo mundo que andava caiu fora do barco, menos eu (risos). Nós temos que enfrentar as coisas de frente. Ter realmente coragem e seguir adiante. Não olhar para trás e não se lamentar. Lógico que eu gostava de andar. Não posso mais, beleza, não é isso que vai me limitar. Então foi um desafio, fui lá encarei. Foram 6 horas de rafting. Com o paraquedas, eu também encarei. Eu tinha medo de altura, mas fui lá com coragem e me joguei de uma altura de 36 mil metros, junto com o instrutor. Foi bem punk o negócio. Senti o medo só de como chegar ao chão, de dobrar ou quebrar a perna. Quando chegamos no chão, não foi tranquilo, nós rolamos, mas graças a Deus, não quebrei nada e tô aqui vivo até agora. E ainda por cima faria tudo de novo.
Pixy – E qual é agora a próxima aventura?
Fábio – O meu maior desejo agora é ser pai. Eu tenho esse sonho. O acidente me trouxe uma sequela de não poder ejacular, o sêmen acaba voltando para a bexiga. Eu tenho a ereção normal tudo, mas sem ejaculação. E para conseguir ser pai, eu tenho que fazer o tratamento para fertilização in vitro.
Pixy – Geralmente o cadeirante, devido as limitações, é uma pessoa que perde um pouco a forma física, mas vejo que você mantém a forma. Qual o segredo?
Fábio – Eu faço 5 horas semanais de fisioterapia e hidroterapia, além de manter uma dieta alimentar balanceada.
Pixy – Para concluir, você gostaria de deixar uma mensagem de incentivo para as pessoas que enfrentam dificuldades e passam por grandes problemas?
Fábio – Primeiro lugar buscar a força em Deus. Depois acreditar em você mesmo. Existe uma parábola na internet em que duas criancinhas pequenas estava brincando em um lago congelado. Uma delas caiu dentro e a outra tentou socorrer. Ela pegou o seu patins de patinação e quebrou o gelo em volta e conseguiu resgatar o seu amiguinho. Depois os bombeiros chegaram ao local e cons-tataram que aquilo era impossível. Na ótica deles, como uma criança com as mãozinhas frágeis tinha conseguido quebrar o gelo? O que acontece é que enquanto não chega alguém e diz que aquilo é impossível, nada é impossível. Então eu digo assim para as pessoas: "acredite em si próprio, não deixe as pessoas acreditarem que aquilo que você quer é impossível, porque uma hora você vai conseguir. Tudo é possível para aquele que crê".
Nenhum comentário:
Postar um comentário