quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Anajás (PA) tem quase metade da população com casos de malária

Você conhece, mas ninguém fala dela. Está perto da sua casa, do seu trabalho, da sua família. É doença do silêncio. Em mais uma série especial do Bom Dia, os repórteres Marcelo Canellas e Luiz Quilião cruzaram o país para mostrar os efeitos da tuberculose, do mal de chagas e da malária.


Na África, a malária ainda mata três mil crianças por dia. No Brasil, está concentrada na Amazônia. Em 2009, foram 300 mil casos. No primeiro semestre deste ano, mais de 120 mil. A malária mata, maltrata e ameaça o futuro de milhares de brasileiros desde os primeiros anos de vida.

No calor equatorial da Amazônia, a sensação é de que o corpo congelou. “É um frio que parece que vai quebrar os ossos”, diz um rapaz. Ele estica o braço para mostrar o tremor da doença. “Muito tremor, febre, dor de cabeça, dor nas costas”, relata.


O exame é só para confirmar o óbvio. “Já tem o diagnóstico clínico de malária. Não adianta (dar o cobertor para ele). Nenhum cobertor vai curar isso”, diz o Dr. José Maria de Souza, do Instituto Evandro Chagas que estuda a malária há quase 50 anos.

Todos os dias, dezenas de pacientes prostrados e febris esperam para ser atendidos por ele no ambulatório do Instituto Evandro Chagas em Belém. “Começam os sintomas hoje em que se incluem a febre. Passa um dia sem febre. E dá febre no outro dia. Ou seja, 48 horas”, aponta o médico.

No Brasil, são três tipos de malária: vivax, falciparum e malarie. Todos são transmitidos pela fêmea do mosquito Anáfloes que pica a pessoa e introduz o parasita. É um protozoário que circula no sangue e destrói as hemácias, os glóbulos vermelhos. “Em 48 horas, rompe a hemácia, joga no sangue substâncias tóxicas que produzem esse fenômeno: febre, frio ou cale-frio, e muita dor de cabeça”, destaca Dr. José Maria de Souza, do Instituto Evandro Chagas.

Este ano, o número de testes positivos de malária no ambulatório aumentou em 50%. “Na Amazônia como um todo, aquilo que a gente esperava que 2009 para 200 e poucos mil ultrapassou a casa dos 300 mil”, afirma o médico.

O Brasil conseguiu a façanha de reduzir a malária de 10 milhões de casos anuais em 1940 para 50 mil em 1970. Mas a doença voltou com força, quando os governos da ditadura militar iniciaram os projetos de colonização da Amazônia.

“O que existia de malária nos anos de 1960? Alguns milhares de casos de malária na Amazônia. O que aconteceu com a penetração do homem e a alteração do meio ambiente, a fronteira agrícola que se expandiu? O número de malárias passou de alguns milhares para quase 500 mil casos de malária na década de 80”, explica o infectologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva.

O Grupo de Controle da Malária do Ministério da Saúde, criado em 1999, conseguiu reduzir o número de casos para 300 mil por ano. “Na ilha de Marajó, teve um pico de malária importante. Por quê? Por causa da atividade econômica novamente. É o homem que penetra certas áreas e aumenta muito a sua participação, aumenta a degradação ambiental, aumenta a produção de mosquito. Novamente, picos de malária”, afirma o infectologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva.

Um carro leva doente do Marajó. A prefeitura da cidade de Anajás mantém uma casa na periferia de Belém para que eles se tratem na capital. “Todas as semanas chega gente com malária. Vem gente de barco. Vem gente de avião”, conta a coordenadora da Casa de Apoio, Maria Mesquita Soares.

Encontramos 60 pessoas em uma casa de oito cômodos. Alguns tiritando de frio. “Esse nunca pegou malária antes. É a primeira vez. Ele está com febre, todo enrolado, com frio”, diz a coordenadora da Casa de Apoio, Maria Mesquita Soares.

“É muita malária. Tem pessoas que passam uma semana, tomam pílula e está de novo com a malária”, aponta o catador de açaí Eliel Furtado.

A agricultora Rosilene Amaral está na sua décima malária. “Está me ardendo tudo, vai me matando”, revela. Dessa vez, a doença veio forte, a ponto de assustar.

A cidade de Anajás está no coração da ilha de Marajó, tem 25 mil habitantes e 10 mil casos de malária só na primeira metade do ano. É quase impossível encontrar alguém que não tenha sido contaminado, pelo menos, uma vez. “Já peguei (malária) muitas vezes já. Umas 17 vezes, mais ou menos”, diz o pescador Miquéias de Almeida.

Velhos, jovens, crianças, ninguém escapa. Uma mulher grávida de quatro meses informa ao repórter Marcelo Canellas que está com a doença.

A cidade foi construída em cima de um imenso criadouro de mosquitos. Toda a área alagada é foco do mosquito. Todas as casas têm palafitas, uma passarela suspensa ajuda as pessoas a caminhar.

A dona de casa Alzira Martins nem sabe mais quantos exames já fez. “Às vezes, a gente guarda papel. Às vezes, não. Tenho uma lata cheia de papéis de malária”, diz.

Na casa da família Souza, é pior. Um menino de um ano e dois meses já está com malária. Outro bebê também está com a doença. “Nesses 11 meses que ela tem, já são umas 15 vezes que ela teve a malária. No máximo, é um mês que passa sem estar com malária”, informa o catador de palmito Eurani dos Santos.

O catador de palmito Manoel de Souza do Rosário calcula que os integrantes da família pegaram a doença cerca de 120 vezes, nos últimos dois anos. “É difícil uma semana que não dá malária”, informa.

Como manter uma vida escolar normal em Anajás? Ter malária entre os estudantes significa uma semana de ausência, pelo menos, mas há casos mais graves. “Tem aluno que está há três meses sem vir à aula, porque a malária não deixa. Quando ele vai melhorando, ela renova”, conta a professora Maria Brasil.

A professora nos leva para conhecer o garoto. No caminho, fica claro porque a cidade é também campeã de casos de hepatite e febre tifóide: o esgoto está junto do cano que leva água potável para a casa das pessoas.

O estudante Richarlis está em casa. Ele conta que a malária passou um pouco, mas o garoto ainda está anêmico e se recupera devagar. “Eu tinha medo que ele morresse”, diz uma mulher.

Nos povoados mais distantes, o agentes de saúde se queixam da falta de remédio. “Outro dia mesmo, eu peguei malária. Eu pego 15 dias e já estou com sintomas de novo, porque não tinha primaquina, só cloroquina. Quase todos os pacientes estão no mesmo caso que eu”, informa o enfermeiro.

Miriam está tomando apenas um dos remédios que tinha que tomar. Ela revela que está com malária, que está com uma dor no estômago. “Não posso comer nada, porque tudo que eu como parece que vai em uma ferida”, diz.

“Ela está sentindo frio e tremores. Provavelmente, ela está com as duas malárias: plasmodium vivax e plasmodium falciparum. Com esse frio, não há o que fazer”, diz o enfermeiro.

As autoridades municipais alegam que não podem fazer mais do que já fazem. “Quando você comprova que é malária, a única medicação é a primaquina e a quinina. São medicamentos que normalmente estão faltando no município. Não tem o remédio no município”, informa a diretora do Hospital de Anajás, Marilândia Lucena. “A gente só está fazendo o tratamento alternativo que é só com a quinina”.

Em Brasília, o Ministério da Saúde reconhece que faltou remédio durante uma quinzena. “Faltou, porque o produtor do medicamento que é a Farmaguinhos da Fiocruz teve um atraso na chegada da matéria-prima que vem da China. Então, houve esse atraso na entrega e atraso na produção”, explica José Lázaro de Brito Ladislau, do Programa Nacional de Controle da Malária.

No ano passado, em mais de 300 mil casos, houve menos de 100 mortes por malária no Brasil. Traço estatístico ou tragédia humanitária? “Para mim, é terrível. Não consigo aceitar isso. Para mim, era para morrer zero. Salvar uma vida é salvar a humanidade. Portanto, perder uma vida é perder a humanidade”, declara o Dr. José Maria de Souza, do Instituto Evandro Chagas.
Fonte: G1

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