domingo, 7 de novembro de 2010

Pobre ou miserável? Realidade versus estatística

A presidente eleita, Dilma Rousseff, prometeu erradicar a miséria e reduzir a pobreza a apenas 4% da população até 2014. Mas a problema começa com a definição de uma coisa e outra. Em Curitiba, por exemplo, famílias vivem em condições idênticas na mesma área de invasão, mas para as estatísticas uma é pobre e a outra, miserável


João e Mariley moram com dois filhos num casebre no quadrante mais miserável da paupérrima Vila Pantanal, em Curitiba. Fogão, tevê e geladeira são de segunda mão, a luz é clandestina. O lixo toma todo o quintal e os 10 porcos da família chafurdam no esgoto a céu aberto, logo em frente. A imagem perturba; o cheiro é nauseante, sempre. Apesar de a realidade dizer o contrário, eles não são considerados miseráveis pelos órgãos oficiais que definem a que classe so­­­cial cada brasileiro pertence. Eles são pobres, quando muito. Votaram em Dilma Rousseff para presidente, embora não acreditem na promessa de erradicação da miséria no Brasil.

A Vila Pantanal de João Bento de Barros, 57 anos, e Mariley Aparecida Andrade, 45, é um retrato das contradições sociais e imperfeições estatísticas desse Brasil que Dilma promete acabar. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calcula existir atualmente no país 40 milhões de pobres e 13,5 milhões de miseráveis, cálculo feito depois de analisar os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada a cada ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com base nessa amostragem, o Brasil tinha 61 milhões de pessoas na pobreza e 22 milhões na miséria em 2003.


O grande feito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dito por ele próprio, foi retirar 28 milhões de brasileiros dessa condição em oito anos. Dilma promete completar o serviço em quatro anos, pondo fim à miséria até 2014 e reduzindo a pobreza a 4% da população. Estaria antecipando em dois anos o avanço que o Ipea previu para o país em julho. Os miseráveis subiriam para o status social dos pobres, que estariam reduzidos a menos de 8 milhões. Porém na prática a diferença entre eles é quase imperceptível.

Na mesma Vila Pantanal mora a desempregada Elza Aparecida Santos do Nascimento, 42 anos, e o borracheiro Luiz Sérgio Basílio, 41. Elza vive com o marido, José Aparecido de Castro, 40, e com o filho Cleiton, de 4 anos e 8 meses. Luiz mora com a mulher, dois filhos, a nora e uma neta. Apenas uma cerca de arame separa o barraco de Elza da casinha de Luiz, mas, pelos critérios do Ipea, ele é pobre, ela é miserável. Os porquês: pobre é quem tem renda domiciliar mensal de até meio salário mínimo (R$ 255), miserável ganha por mês um quarto de salário mínimo (R$ 127,50). Contudo, a realidade de lugares como a Vila Pantanal revela na prática que não só a renda define quem é pobre ou miserável, mas as condições gerais de vida, como habitação, saneamento, educação, estabilidade e qualidade dos serviços públicos.

Pobre ou miserável?

A família de Elza sobrevive da renda variável do marido, servente de pedreiro, que gira em torno de R$ 200 nos meses mais produtivos. Somados os R$ 45 do Bolsa Família e outros R$ 35 de auxílio de programas municipais, a renda familiar não chega a R$ 300 mensais. Na melhor das hipóteses, dá R$ 100 per capita, ou seja, bem abaixo da linha de corte do Ipea para a miséria. Já o borracheiro recebe R$ 900 por mês do INSS por causa de um acidente de trabalho ocorrido há seis anos. O filho ajuda na renda com mais R$ 575 por mês, fruto de trabalho com carteira assinada. A renda per capita na família de Luiz é de R$ 245.

Pelas estatísticas, mais R$ 10 tirariam a família de Luiz da pobreza, apesar de suas condições de vida pouco diferir da miserabilidade da vizinha Elza. Ainda pelo critério de renda, Luiz está na classe C, condição dos lares que recebem entre R$ 1.115 e R$ 4.807 por mês. Essas contradições estatísticas também incluem João e Mariley, cuja renda catando lixo reciclável varia conforme o mês. Em condições normais, dá algo em torno de R$ 700. Dividido por quatro (incluindo os filhos de 10 e 16 anos), eles têm renda per capita mensal de R$ 175. Para reforçar o orçamento, criam no quintal 10 porcos, 20 cabritos e três cavalos.

“Não sei se tô falando certo ou errado, mas acho que vai ficá do jeito que tá mesmo”, diz João sobre as promessas de Dilma de erradicar a miséria no país. Para ele, figurar na estatística dos pobres ou na dos miseráveis não faz diferença. Ele próprio é um exemplo da gangorra em que vivem os brasileiros dos dois estratos mais baixos da pirâmide social. Nessa atividade, os ganhos variam conforme o clima, a época do ano, as crises econômicas. Em meses de coleta ruim, o mau desempenho coloca-o abaixo da linha da miséria do Ipea. Assim, nos meses de coleta boa ele é pobre, nos meses ruins, é miserável.

Gente como João vive na instabilidade, sem uma renda estável. No Brasil existem pelo menos 800 mil carrinheiros, segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável. A maioria não tem amparo de associações ou cooperativas, o que os deixa vulneráveis às intempéries do dia a dia. Ele pode melhorar a renda num mês, mas piora no seguinte. Há explicações para isso.

A professora de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná Luciana Veiga diz que as conquistas sociais dos últimos anos não estão consolidadas e mudanças no cenário econômico do país podem reverter a melhoria de vida, seja através do Bolsa Família, ganhos do salário mínimo ou de aposentadorias. A construção de uma camada social menos miserável e pobre ainda é instável, segundo ela. “O marido (em uma família) é empregado, mas se ele ficar doente e passar cinco dias em casa, vai faltar dinheiro e a família vai passar fome. Se tiver que comprar remédios, a família vai passar fome.” Por isso ela defende políticas públicas voltadas para essa camada da população para evitar que elas fiquem desabrigadas num cenário econômico ruim.
REALIDADE VERSUS ESTATÍSTICAS:

João, Mariley e os dois filhos moram na área mais carente da paupérrima Vila Pantanal, área de invasão de Curitiba. Eles vivem na miséria, mas nas estatísticas figuram “apenas” como pobres

Gazeta do Povo:  Mauri König e Heliberton Cesca

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