Talvez a coisa ande mais feia no arraial petista do que indica a primeira pesquisa. O fato é que a Dilma Rousseff que se viu ontem no debate da Band é muito diferente daquela que aparece no horário eleitoral gratuito. Aquela senhora que se esforça para ser suave, a mãe do Brasil, a tchutchuca do neoestatismo desenvolvimentista, a que aprendeu a endurecer sem perder a ternura jamais, nem parecia ter Antonio Palocci como um dos coordenadores da campanha. O que se viu ali era o estilo Ciro Gomes, porém sem a desenvoltura vocabular do ex-governador do Ceará, que consegue falar bobagens monumentais, mas sempre com muita fluência. Dilma tem uma fala mais truncada, dá umas tiriricadas no meio da frase, o sentido às vezes se esvai. Não deu folga: partiu pra cima do tucano José Serra. O debate foi útil para saber as duas armas do PT no segundo turno: vitimismo agressivo e, de novo!, ataque às privatizações.
Eu tinha a expectativa de que seria Dilma a primeira a tocar no assunto do aborto. Batata! Com que objetivo? Parece que a intenção era uma só: “Se eu sair daqui conseguindo, no mínimo, dividir com ele o peso da questão do aborto, já está bom”. Não acho que tenha conseguido. A razão é simples, elementar mesmo: ela já defendeu a descriminação em várias entrevistas; ele não.
Dada a ausência de limites que sempre caracteriza os petistas, Dilma tentou uma saída complicada: acusar Serra de ser o autor da norma técnica que disciplina o aborto legal nos hospitais públicos nos dois casos permitidos: estupro e risco de morte da mãe. Como não podia dizer que isso é, em si, um mal, dado que a lei data de 1940, dois anos antes de Serra nascer, ao mesmo tempo em que tentava acusá-lo, ela se dizia favorável à medida. Dilma se esqueceu de que a norma técnica em questão exigia o boletim de ocorrência em caso de estupro; quem acabou com o BO, bastando a declaração, foi o petista Humberto Costa quando ministro da Saúde.
Eu reluto sempre em dizer quem ganhou, quem perdeu, porque é a percepção do publico que conta nesse caso. A minha impressão é a de que a imagem de tranqüilidade de Serra contrastou com a de fera ferida de Dilma, que se mostrou acuada, brava, aerofágica, carrancuda, desfazendo, ao menos naquele encontro, a imagem da condutora tranqüila do PAC.
A segunda peça de resistência é a mesma de 2006: Dilma repete o texto de Lula e acusa os tucanos de “privatistas”, afirmando que eles têm a intenção de privatizar o pré-sal, a Petrobras e por aí afora. E, como de hábito, lançou acusações confusas sobre a privatização de estatais no passado. Parte da imprensa — e contestei ontem aqui um texto de Elio Gaspari — acha um “absurdo” e uma “baixaria” que se atribua a Dilma o que Dilma realmente fez: a defesa da descriminação do aborto. Mas certamente vai considerar que o tema “privatização” é nada além de uma questão política, embora se trate de uma mentira grotesca no que se refere ao presente e ao passado. E com mentirinhas associadas. Dilma acusou Serra de ser o responsável pelas privatizações da Light e da Vale. Ele deixou o ministério do Planejamento do dia 31 de abril de 1996 — a Light só seria privatizada no mês seguinte; a Vale, só no ano seguinte, e a Telebras teve de esperar até 1998.
Os programas do PT certamente continuarão a vender aquele Brasil “como nunca antes na história destepaiz”, mas vão optar, como dois e dois são quatro, pela demonização das privatizações feitas no governo FHC — o que é intelectual e moralmente criminoso no mérito e nas circunstância. O tom apenas propositivo, próprio do tempo em que eles imaginavam não ter adversários, cederá àquilo que o PT sabe fazer muito bem e que sempre caracterizou a sua abordagem da política: a tentativa de desmoralizar o adversário. E vai ser na base da pauleira, mais para Ciro Gomes do que para Antônio Palocci.
É um debate que terá de ser enfrentado pelo candidato da oposição, entendo, de dois modos: evidenciando os ganhos óbvios da privatização e demonstrando que a privatização do PT se faz de outro modo: a dos tucanos se dá na Bolsa de Valores;, com regras; a de seus adversários, na bolsa dos larápios que atuavam, por exemplo, na Casa Civil.
Os candidatos debateram ainda segurança pública e o programa Minha Casa, Minha Vida. O primeiro tema por iniciativa do tucano, o segundo, da petista. Dilma tentou esculhambar São Paulo, que apresenta hoje um dos menores índices de homicídio do país — está em antepenúltimo lugar: pouco acima de 10 por 100 mil habitantes. A taxa do Brasil é quase o triplo: 26 por 100 mil. No caso do programa de casas populares, acusou, o que também é falso, o adversário de ser contra o programa. Nunca houve uma frase de Serra atacando a iniciativa — e isso é fato. O que ele fez, no caso, foi falar a verdade: Dilma prometeu 1 milhão de casa, e Lula encerrará o mandato entregando pouco mais de 150 mil.
Foi o embate mais duro da campanha. Tenho a impressão de que Dilma perdeu porque uma coisa é ser firme; outra, diferente, é ser agressiva — mas, reitero, isso é com o público. Ela me parecia muitos tons acima do necessário. Poderia ter dito as mesmas coisas, porém com mais tranqüilidade. Ali, parecia estar entregue à sua própria natureza, como quem se revelasse. E o tucano não perdeu a chance de apontar os excessos, dizendo-se, um tanto irônico, surpreso com o comportamento da adversária. Não estava, é claro. No fundo, todos estávamos constatando o que já sabíamos.
Por Reinaldo Azevedo
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