segunda-feira, 2 de maio de 2011

A felicidade não existe

Felicidade: haverá tema mais infeliz? É o único conselho: não vale a pena seguir conselhos. Livros de auto-ajuda são livros de anti-ajuda. Transformam a felicidade em direito e, coisa pior, em dever. Conheço casos: gente que começou infeliz lendo um desses manuais e, no final da odisseia, estava mais infeliz ainda.


Se assim é para os indivíduos, o cenário piora para as nações. Falar de um "país feliz" é tão absurdo como falar de um "hipopótamo voador". Os países não são pessoas. Mas os políticos tentam.

Leio regularmente que, por toda a Europa, filósofos, psicólogos e economistas estudam medidas públicas destinadas a elevar a felicidade da população. Alguns especialistas falam mesmo em "Felicidade Interna Bruta" como mais importante que "Produto Interno Bruto" para medir a riqueza de um país.

E, nos Estados Unidos, conta o "The New York Times" que o Censo de Boston começou a perguntar aos habitantes quão felizes eles se sentiam. A ideia do poder político é reunir respostas, fazer gráficos rigorosos sobre os humores da população - e depois aplicar medidas para tornar o pessoal mais alegre. Sem ser através de químicos no ar ou na água.

Aviso já: nada disso funciona. E não funciona porque a felicidade não existe - no coletivo. Existem felicidades particulares, individuais, muitas vezes intransmissíveis, que não podem ser reduzidas a um denominador comum. Eu sou feliz quando toco bandolim. O meu vizinho é infeliz quando me ouve a tocar bandolim. Caso encerrado.

As pessoas não são números. São pessoas: distintas, irrepetíveis. Muitas vezes insondáveis e insolúveis. E aquilo que as torna felizes, ou infelizes, varia de caso para caso --e, mais ainda, de momento para momento. De nada vale eu responder ao Censo que me sinto feliz hoje quando, ainda ontem, eu estava infeliz da vida.

Mas a felicidade não é apenas um conceito deslocado para pensarmos politicamente; é sobretudo perigoso. A ideia 'utilitarista' de que o governo deve perseguir sempre 'a maior felicidade para o maior número', apesar do seu agradável apelo democrático, pode legitimar situações intrinsecamente desumanas ou imorais.

Se, por hipótese remota, uma comunidade se sente feliz perseguindo judeus, ou negros, ou mulheres, ou homossexuais, ou anões, que podem os "utilitaristas" responder a esse conjunto de preferências coletivas? Acreditar que a vida moral é uma mera questão quantitativa abrirá sempre portas para horrores mil.

O Estado quer "promover" a felicidade? Muito simples: basta que se retire das vidas individuais sem exercer sobre elas qualquer poder paternal, autoritário, totalitário.

Quando um Estado pergunta "quão feliz você se sente?", só é possível responder a isso com uma nova pergunta: "E o que você tem a ver com o assunto?"


Por: João Pereira Coutinho, 34 anos, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha.com.

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